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Pensamentos e Reflexões

terça-feira, 31 de março de 2020

Quarentena #dia18


_ Já decidiu se vai me matar com as flechas ou com alguma faca?

Colocando o pânico de lado, confesso que minha vida não mudou muito. Trabalho esporadicamente, sou atriz sem contrato, trabalho quando estou em cartaz no Teatro ou fazendo testes de publicidade, algumas vezes pegando o papel e gravando 1 ou 2 dias. Cinema e TV para cada teste 2 dias, um para preparo outro para captação e se pegar o job 1 mês de preparo e 1 mês de captação, por isso fico muito em casa!

Minha casa é super organizada, herdei da minha vó que me chamava para ajudá-la em trabalhos domésticos sempre contando histórias incríveis que faziam com que eu hipnotizada fizesse tudo que ela queria, assim aprendi e desenvolvi uma mania quase esquizofrênica de ter tudo organizado, por cores, tamanhos, tipo, minha lógica, como eu gosto e me sinto bem, muito bem, tão bem que posso passar dez dias sem sair de casa e nem perceber isso.

Hoje estou há 18 dias, louca para visitar minha mamay e meu padrasto. Penso todos os dias nessa possibilidade e vejo o dia cair sem ter feito qualquer movimento para isso.

São tantas coisas...! Primeiro o pavor de “furar” o isolamento deles.

Depois vem manter a ordem da casa, as três refeições diárias e suas ramificações, as roupas para lavar e estender, a troca de roupa de cama, de banho, depois dobrar tudo e guardar, a limpeza da casa..., eu sempre fiz tudo sozinha.

É sobre isso que parei para escrever. No segundo dia de quarentena meu marido me perguntou,

_ E agora que a casa não será mais só sua?

Todo dia acordamos tarde, tomamos café da manhã e ele vai para a produtora.

Eu tenho o dia todo para criar, desenvolver meus projetos, escrever textos, fazer ginástica, dançar rodopiando de braços abertos pela sala, cantar bem alto Maria Bethânia, arrumar a casa, ensaiar minha próxima apresentação, escrever mais um pouco, lavar roupa, ler, rever a novela que perdi aquela parte, editar material captado, abrir uma massa de torta, falar com minhas amigas que moram nas gringas...

Esse texto faz três dias que escrevo e deixo de lado, o grande problema que achava que tinha deixado para trás voltou com força total! A minha autocensura. Como posso escrever sobre minha rotina nos meus 50 metros quadrados, com tantas pessoas que dividem um espaço menor em maior número? Ou meu medo de engordar depois de 2 anos de treinamento diário, com tantas pessoas sem ter o que comer?

Como escrever crônicas da vida real se represento menos de 15% da população do meu Brasil? Isso me inibe muito, fico constrangida, não represento nem a metade, da metade da maioria, mas tem uma voz aqui dentro que não consegue calar. Espero que minha verdade não ofenda a realidade de ninguém, e que possamos com todas as diferenças desse Brasilzão enorme e desigual trocar e aprender uns com os outros.

Outro dia, antes da quarentena, numa visita a minha mamay eu vi um quadro incrível de arco e flechas encostado numa coluna da garagem, como se não fosse nada, junto com o fim de uma mudança. Registrei e subi, logo em seguida desci para ir até a papelaria. Dei de cara com a dona do quadro, sem pensar nada, perguntei;

_ E  esse quadro porque está aqui de canto, é para doação? Ele é absolutamente incrível! A senhora muito bonita e elegante, concordou comigo e me respondeu que estava entregando o apartamento em vinte minutos e não tinha o que fazer com o quadro. Passei a mão no celular para falar com o Mau e desliguei, #ninguémmandaemmim, decidida que aquele quadro era para ser meu, respondi com o coração desritmado;

 _  É meeuuu!!! posso tirar daqui e colocar na garagem da minha mãe?!

O quadro mexeu comigo, cresci escutando com muito orgulho histórias de uma Índia corajosa e guerreira, minha ancestral, agora que tenho minha árvore genealógica consigo ver exatamente a distância que tenho daquele arco e flecha, não é tão grande!

O Mau ficou dias olhando para aquele quadro meio desconfiado...,

_ Já decidiu se vai me matar com as flechas ou com alguma faca?

Respondi rindo que se fosse com a faca eu já sabia exatamente qual usar! A mesma que ele! A dos selinhos do Pão de Açúcar!


#dia18

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